quinta-feira, 2 de setembro de 2010



A valorização do submundo da cozinha

O chef de Manhattan, conhecido como amante do submundo e autointitulado de nerd da comida, viaja pelo mundo a fim de conhecer novos hábitos culinários.

Conhecido por seu lado irônico, o apresentador de TV do programa “Anthony Bourdain – Sem Reservas” usa os offs para revelar o que realmente pensava quando comia determinado prato. Em cada episódio, Anthony embarca para um país a fim de descobrir como as pessoas se alimentam em diferentes partes do mundo.

Assisti-lo tomando um porre de vodka e depois sendo “espancado” com ramos de sálvia em uma casa de massagens na Rússia é cena aceitável para quem confere todos os programas e passa a conhecer melhor esse chef de humor ácido e amante de coisas bizarras.
O que o tornou famoso foi seu livro “Kitchen Confidential: Adventures in the Culinary Underbelly” (“Cozinha Confidencial”, Companhia das Letras), sobre o submundo da cozinha. Nele, declara que se adapta muito bem à “hierarquia militarizada e ao caos ordenado da cozinha”. Para ele, tal ambiente é confortável como um banho de banheira.
O escritor Charles Bukowski parece inspirar Anthony em suas missões boêmias e cheias de comidas gordurosas. Assim como nos livros do velho contista americano, o chef tem um charme de solitário e é amante do punk-rock. Formou-se no Culinary Institute of América em 1978 e administrou diversos restaurantes em NY, como o Supper Club, One Fifth Avenue e o Sullivan’s. Atualmente ele é gourmand do bistrô Brasserie Les Halles em Manhattan
A partir do lançamento do livro, que hoje é best-seller, Anthony tornou-se conhecido da mídia e hoje está à frente do programa Sem Reservas. No reality, ele procura o estranho e selvagem em suas viagens. E como chef se interessa pela forma como as pessoas comem em outros países, cidades e vilarejos. Entre os lugares que visitou estão Malásia, Coréia, China, Porto Rico, Sicília, Toscana, Praga, Londres, Nova York, entre outros, até mesmo São Paulo.
Na cidade paulistana ele conheceu o Mercado Municipal, fornecedor de alimentos para diversos restaurantes e construção histórica que recebe visitas de paulistas e turistas aos fins de semana. Além de comer um autêntico pão na chapa no café da manhã e provar um ovo empanado no boteco. Ele diz que aprendeu a gostar da cidade que chamava de “feia” anteriormente.
O canal de viagens rendeu a brincadeira de que há dois Anthonys, o Tony do mal e o Tony bonzinho. O apresentador sarcástico tem sempre um comentário sobre a viagem, o anfitrião, os costumes locais e a comida. A situação tem que ser realmente comovente ou trágica para que ele se deixe levar pelas emoções. Ele amoleceu bastante em dois momentos ao longo de suas viagens. Uma vez no Brasil, quando foi convidado para um samba com feijoada, e ao lado de três mulheres e, claro, depois de algumas caipirinhas, sentiu-se confortável, livre da “carapuça rabujenta” que o acompanha.
Outra vez foi no Vietnã, quando decidiu conhecer vítimas de minas submersas no país, resultado da 2ª Guerra Mundial, e foi convidado para almoçar com uma família em que o pai não tinha uma perna, por conta de uma mina de guerra. O sentimento de culpa, por sua nacionalidade americana, o fez ficar calado, sem emitir comentários engraçadinhos, e apto para receber de coração aberto o que lhe ofereciam para comer.
Em alguns momentos, comer a comida local exige certos sacrifícios. Como na viagem para Namíbia, onde o chefe da tribo que o recebeu ofereceu a carne de “Warthog”, um animal da família do porco, que Anthony já sabia estar contaminado com bactérias e micróbios. Ele, porém, comeu silenciosamente e agradecido. Posteriormente declarou: “O chefe está lá, em frente a toda sua tribo, oferecendo a você o que tem de melhor. Mostre respeito. Tenho sorte de estar lá. Tenho sorte de ver aquilo. Tenho sorte de ter aquela experiência. Engolir alguns antibióticos é um preço muito baixo a se pagar”.
É isso que o motiva a continuar colocando à prova seu organismo. Em seu livro, “The Nasty Bits” (“As Partes Nojentas”), ele descreve, como o título diz, os momentos desagradáveis do programa de TV. Uma das cenas é de uma família de esquimós que caça uma foca e convida Anthony para comê-la crua. Eles colocam um pedaço de plástico no chão, a foca por cima, e vão abrindo a cabeça dela, retirando os pedaços de carne, as gorduras, e comendo da forma que encontram. Todos participam deste momento, a avó, a mãe, o pai, as crianças, com extrema naturalidade. Ao final, a avó pega algumas blueberries (espécie de fruta, da América do Norte) mergulha-as na carne e na gordura da foca e entrega para o apresentador comer. “Elas eram deliciosas”, conclui Tony.
Ele tenta expressar esses momentos com o máximo de respeito, pois deseja conhecer aquela cultura diferente da sua. Sobre a cena da foca ele explica em seu livro: “Você tinha que ter sentido o frio lá de cima, ter visto aquilo, centenas e centenas de milhas sem sequer uma árvore. Você tinha que ter ido caçar lá fora com o Charlie (pai da família), como eu fui, naquela baía congelante, um corpo de água perto do gigante oceano. Observá-lo a andar por trechos estreitos, escavando o gelo para arrastar a foca de volta para a canoa. Ouvir, como ouvimos, as resignadas chamadas de outros caçadores no rádio de Charlie, emperrado numa nevasca noite a fora, percebendo que eles não teriam abrigo nem fogo. Você teria que ter estado naquela cozinha”.
A partir dos olhos de Tony, o telespectador pode ver o que não é clichê e mergulhar na cozinha de um restaurante ou de uma família, no jeito de comer de outras pessoas e conhecer um lugar que não é para simples turistas, mas para quem deseja tornar-se parte, mesmo que por alguns dias, do país em que se encontra.

E isso é talvez o que diferencia Sem Reservas de outros programas culinários. A partir da valorização do submundo da cozinha, do entendimento de que o ato de se alimentar não é igual para todos, é possível, então, compreender que apreciar o sabor da culinária local é único e pode ser delicioso mesmo para os forasteiros.
Os novos episódios do programa têm entre os destinos Istambul, na Turquia, Rajasthan, na Índia e Egito. Os programas são exibidos no canal a cabo Discovery Travel & Living às quartas-feiras às 23 horas, com horários alternativos às quintas-feiras às 21 horas, sábados às 22 horas, e domingos às 19 horas.


Foto: Divulgação

*Publicada na edição 93 da Revista Alta Gastronomia

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