terça-feira, 4 de setembro de 2007

"O Bife com Batatas Fritas"

Roland Barthes
Mitologias


"O bife e o vinho compartilham a mitologia sangüínea. É o coração da carne; é esta em seu estado puro, e qualquer um que a consuma assimila a força do touro. Obviamente, o prestígio do bife deve-se ao seu estado de simicrueza: nele o sangue é simultaneamente visível, denso, compacto e suscetível de ser cortado: imagina-se logo a ambrosia antiga sob a forma de uma matéria pesada que diminui entre os dentes, de modo a fazer com que se sinta ao mesmo tempo a sua força de origem e a sua plasticidade se expandirem no próprio sangue do homem. O estado sangüíneo é a razão de ser do bife: os graus de sua preparação são expressos não em calorias, mas em imagens de sangue(...) A sua preparação, mesmo moderada, não pode se exprimir francamente; para este estado contrário à natureza, é necessário um eufemismo: diz-se que 'o bife está no ponto´, o que, na verdade, é apresentado mais como um limite do que como uma perfeição.
Comer um bife sangrando representa assim, ao mesmo tempo, uma natureza e uma moral (...) E assim como o vinho se transforma, para um bom número de intelectuais, em substância mediúnica que os conduz à força original da natureza, do mesmo modo o bife é para eles um alimento de redenção, graças ao qual tornam o seu cerebralismo mais prosaico e conjuram, pelo sangue e a polpa mole, a secura estéril de que são acusados.
A moda do bife tártaro, por exemplo, constitui uma operação de exorcismo contra a associação romântica da sensibilidade e do aspecto doentio: na preparação do bife tártaro, estão presentes todos os estados germinantes da matéria: o purê sangüíneo e a clara viscosa do ovo, um concerto de substâncias moles e vivas, uma espécie de compêndio significativo das imagens dos prelúdios do parto.
Tal como vinho, na França o bife é um elemento básico, mais nacionalizado do que socializado, estando presente em todos os cenários da vida alimentar: chato, debruado de gordura e em forma de sola de sapato nos restaurantes baratos; espesso e suculento nos restaurantes especializados; cúbico, o coração úmido, sob uma fina crosta carbonizada, na cozinha de primeira; participa de todos os ritmos, desde a confortável refeição burguesa ao lanche boêmio do celibatário; é uma alimentação simultâneamente rápida e densa, que realiza a mais perfeita união entre a economia e a eficácia, a mitologia e a plasticidade do seu consumo..."

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