quinta-feira, 27 de setembro de 2007

Cheiro de peixe

Quem gosta de ser uma sardinha? É o que me pergunto toda vez que saio de casa depois das seis da tarde a fim de ir para a PUC. A lotação Jardim Jaqueline é um abuso aos cidadãos que buscam dignidade, direito a um bom transporte público, chegar ao trabalho, manter a coluna vertebral inteira e a calma controlada.

A começar que quase não se consegue entrar na "lotação" (e que nome medonho!), pois a porta é a mesma para quem sai. Além dos bancos lotados e caindo aos pedaços, muitas, mas muitas, pessoas em pé se colando umas as outras se aglomeram no veículo.

E como se não bastasse o absurdo da situação, o cobrador sempre gosta de dizer: "Vamos lá pessoal dêem mais um passinho para trás, lá no fundo tá vazio que eu estou vendo daqui...". Diz isso com a intenção de colocar os que chegam ao carro mais rápido e claro ganhar mais dinheiro, deve pensar ele que ganha também a simpatia dos que acabam de chegar, pois terão alguns milimetros a mais para se acomodarem.

Na segunda-feira aconteceu então o ápice, a tradução do espírito de porco em um homem: o motorista do Butantã-USP que passa na PUC lá pelas 23h quis me aleijar. Estava tentando descer quando senti que faltava algo. Era minha perna, que estava do lado de fora sendo esmagada pela porta do busão. O motorista (cujo nome pretendo descobrir para não acusar tantos outros simpáticos motoristas do Butantã) resolveu que eu demorara para descer do ônibus "dele" e resolveu me trancar para dentro, fechar a porta em mim, e ainda deixar minha perna presa do lado de fora.

Comecei a gritar desesperadamente, pedindo que ele não fechasse a porta. Depois de alguns segundos ele resolveu abrir, o carro ainda estava parado. Ele quis foi me dar um castigo, pois o tempo em que permaneci sem perna, era o tempo dele me deixar descer sem acidentes. Comprovei isso, pois uma colega minha estava junto e ouve todos os dias ele dizer..."e aquela sua amiga héim, precisa ser menos folgadinha..."

Quando desci até tentei achar alguma graça na situação. Mas não houve. Então tentei pensar no que fazer, ir à polícia, anotar a placa do ônibus, ligar na prefeitura, nas rádios. Acho que as opções 1 e 2 não funcionariam, prefiro as duas últimas. Procuro uma saída para amenizar o cheiro de sardinha que assola a nós cidadãos brasileiros. Ninguém quer ter o direito a feder a peixe.

terça-feira, 4 de setembro de 2007

"O Bife com Batatas Fritas"

Roland Barthes
Mitologias


"O bife e o vinho compartilham a mitologia sangüínea. É o coração da carne; é esta em seu estado puro, e qualquer um que a consuma assimila a força do touro. Obviamente, o prestígio do bife deve-se ao seu estado de simicrueza: nele o sangue é simultaneamente visível, denso, compacto e suscetível de ser cortado: imagina-se logo a ambrosia antiga sob a forma de uma matéria pesada que diminui entre os dentes, de modo a fazer com que se sinta ao mesmo tempo a sua força de origem e a sua plasticidade se expandirem no próprio sangue do homem. O estado sangüíneo é a razão de ser do bife: os graus de sua preparação são expressos não em calorias, mas em imagens de sangue(...) A sua preparação, mesmo moderada, não pode se exprimir francamente; para este estado contrário à natureza, é necessário um eufemismo: diz-se que 'o bife está no ponto´, o que, na verdade, é apresentado mais como um limite do que como uma perfeição.
Comer um bife sangrando representa assim, ao mesmo tempo, uma natureza e uma moral (...) E assim como o vinho se transforma, para um bom número de intelectuais, em substância mediúnica que os conduz à força original da natureza, do mesmo modo o bife é para eles um alimento de redenção, graças ao qual tornam o seu cerebralismo mais prosaico e conjuram, pelo sangue e a polpa mole, a secura estéril de que são acusados.
A moda do bife tártaro, por exemplo, constitui uma operação de exorcismo contra a associação romântica da sensibilidade e do aspecto doentio: na preparação do bife tártaro, estão presentes todos os estados germinantes da matéria: o purê sangüíneo e a clara viscosa do ovo, um concerto de substâncias moles e vivas, uma espécie de compêndio significativo das imagens dos prelúdios do parto.
Tal como vinho, na França o bife é um elemento básico, mais nacionalizado do que socializado, estando presente em todos os cenários da vida alimentar: chato, debruado de gordura e em forma de sola de sapato nos restaurantes baratos; espesso e suculento nos restaurantes especializados; cúbico, o coração úmido, sob uma fina crosta carbonizada, na cozinha de primeira; participa de todos os ritmos, desde a confortável refeição burguesa ao lanche boêmio do celibatário; é uma alimentação simultâneamente rápida e densa, que realiza a mais perfeita união entre a economia e a eficácia, a mitologia e a plasticidade do seu consumo..."